Violência Doméstica no Nordeste
Uma análise dos dados do Sistema de Informação de Agravos e Notificação (SINAN) entre 2009 e 2018
Resumo
A violência doméstica e familiar contra a mulher é definida e tem respaldo legal através da Lei Maria da Penha (Lei nº11.340, de 7 de agosto de 2006). É comum que esse tipo de violência seja praticado pelo seu parceiro, sendo o ápice o feminicídio que apresenta uma elevada prevalência no Brasil. De acordo com dados do WHO, no Nordeste a região que mais concentra esses casos é a Zona da Mata em Pernambuco. O objetivo deste trabalho é caracterizar o perfil da violência doméstica no Nordeste através dos dados de notificação compulsória do Sistema de Informação de Agravos e Notificação (SINAN) entre 2009 e 2018. O estudo é do tipo observacional e a coleta dos dados ocorreu entre maio e julho de 2020 através da seleção de variáveis da Ficha de Notificação Compulsória de Violência Doméstica, Sexual e Outras Violências Interpessoais. Foram notificados nesse período 180.555 casos de violência doméstica no Nordeste. O maior número de notificações ocorreu em 2018 com 31.268 casos, sendo o tipo predominante a violência física, com 122.684 casos, seguida da violência psicológica/moral com 58.321 casos. O autor da agressão foi o cônjuge em 21,81% dos casos, sendo 45,57% correspondendo a agressão por força corporal/espancamento.
Palavras-chave: Violência doméstica; Notificação; Nordeste.
Introdução
A violência doméstica tem respaldo legal através da Lei Maria da Penha (Lei nº11.340, de 7 de agosto de 2006) e é definida através da mesma como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. (Brasil, 2006).
É muito comum que a violência doméstica seja praticada pelo seu parceiro, sendo o ápice dessa violência o homicídio dessas mulheres (feminicídio), sendo este termo definido pela Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. No Brasil em 2013, a prevalência de homicídios é de 4,8/ 100 mulheres. (Waiselfisz, 2015). De acordo com dados do World Health Organization (WHO) Multi-country Study on Women’s Health and Domestic Violence against women, estudo da OMS realizado em 10 países, Schraiber D’Oliveira, França-Junior, Diniz, Portella, Ludermir e Couto (2007), no Nordeste a região que concentra esses casos é a Zona da Mata (15 municípios) em Pernambuco.
Diversos estudos demonstram os fatores de risco envolvidos na ocorrência da violência doméstica. São eles: ser jovem (Garcia-Moreno, Jansen Ellsberg Heise & Watts 2006;) ; ser negra (Waiselfisz, 2015); ter presenciado ou sofrido violência na infância (Ludermir, Araújo, Valongueiro, Muniz & Silva, 2017), ter baixo nível de escolaridade (Castro; Cerellino & Rivera, 2017); possuir filho de relacionamento prévio (Abramsky, Watts, Garcia-Moreno, Devries, Kiss, Ellsberg, & Heise, 2011); ter parceiros que têm atitudes permissivas quanto à violência contra a mulher ou que estão envolvidos em outros tipos de violência (Fleming McCleary-Sills Morton Levtov Heilman & Barker 2015); e o uso abusivo de álcool pelo parceiro – sendo esse o mais encontrado na literatura (Garcia, Duarte, Freitas, & Silva, 2016; Lírio, Pereira, Gomes, Paixão, Couto & Ferreira, 2019).
Além de ser uma questão social, a violência torna-se um problema de saúde por conta do impacto que provoca na qualidade de vida individual e coletiva, pelas lesões físicas, psíquicas e morais que produz, assim como também por conta das exigências de atenção e cuidados dos serviços médico-hospitalares. (Silva, Araújo, Valongueiro & Ludermir, 2012).
É válido ressaltar que a violência contra a mulher é caso de notificação compulsória no Brasil desde 2003, através da Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003. Portanto, diante de um caso de violência contra a mulher, o profissional deve preencher uma ficha específica e encaminhar aos serviços responsáveis pela informação e/ou vigilância epidemiológica das Secretarias Municipais e Estaduais. A partir desses dados, há o abastecimento do Sistema de Informação de Agravos de Notificação – SINAN, parte do Departamento de Informática do SUS – DATASUS. (Ferraz, 2009).
O enfrentamento à violência contra a mulher envolve inúmeros sujeitos e ações interdisciplinares pois, requer redes de atendimentos à saúde, segurança pública, pessoal, jurídica e social. Ainda, sabe-se que a rede de atendimento a essas mulheres é limitada no Brasil, apesar dos acordos internacionais e dos avanços das políticas públicas nacionais. (Silva et al, 2012). Portanto, o estudo sobre a violência contra a mulher, especialmente no Nordeste, pode contribuir para o fortalecimento de ações e políticas públicas que visem reduzir esse tipo violência.
O objetivo deste trabalho é caracterizar o perfil da violência doméstica no Nordeste através dos dados de notificação compulsória do Sistema de Informação de Agravos e Notificação (SINAN) entre 2009 e 2018.
Metodologia
Para a realização deste trabalho foi realizado um levantamento e apreciação dos dados referentes aos casos de violência doméstica contra a mulher no Departamento de Informática do SUS (DATASUS) e Sistema de Informação de Agravos e Notificação (SINAN) (Pereira et al., 2018). A coleta ocorreu entre maio e julho de 2020 através da seleção de variáveis da Ficha de Notificação Compulsória de Violência Doméstica, Sexual e Outras Violências Interpessoais disponíveis no website do DATASUS. Na plataforma, as seções utilizadas para obtenção dos dados de interesse foram: Informações de
Saúde (TABNET); Epidemiológicas e Morbidade; Doenças e Agravos de Notificação – De 2007 em diante (SINAN); Violência doméstica, sexual e/ou outras violências e Abrangência geográfica Brasil por Região, UF e Município.
Os dados são referentes aos casos de notificação de vítimas do gênero feminino nos anos de 2009 a 2017, notificados no Brasil, disponíveis na plataforma online do DATASUS. Foram excluídos através dos filtros presentes na plataforma os casos que tinham a informação de ser uma lesão autoprovocada. A base de dados do DATASUS não disponibiliza todos os dados referentes à Ficha de Notificação, entretanto, fornece variáveis importantes que foram avaliadas nesse trabalho. Foram elas: Dados da Pessoa Atendida (faixa etária, raça e escolaridade), Dados da Ocorrência (local da ocorrência, violência de repetição, meio da agressão e tipos de violência), Detalhamento dos Casos de Violência Sexual (tipos de violência sexual), Dados do Provável Autor da Agressão (relação com a pessoa atendida e suspeita de uso de álcool pelo agressor) e Evolução do Caso.
Esse trabalho é uma ampliação de dados de um estudo anterior onde só foram utilizadas as notificações do estado de Sergipe, já tendo sido submetido e aprovado na Plataforma Brasil (CAAE: 95289718.4.0000.5546). Os dados foram organizados em tabelas e gráficos e apresentados em frequência absoluta e relativa. Por se tratar de dados secundários do SINAN, informações públicas de livre acesso, o presente estudo não possui restrições éticas para sua condução.
Resultados e Discussão
O ano de maior notificação de violência doméstica na região Nordeste foi o ano de 2018 com 31.268 casos. Observase um aumento da notificação até 2018, com total de 180.555 casos de violência doméstica no período de 10 anos. (Tabela 1)
Tabela 1 – Casos de violência doméstica na região Nordeste, 2009-2018.
A maior parte do tipo de agressão foi realizada com uso de força do corpo ou espancamento com 90.587 (45,57%) casos, seguidas pelo uso de ameaça 37.060 (18,64%), outras formas de agressão 22.077 (11,11%), objeto perfurocortante 19.265 (9,69%), arma de fogo 10.895 (5,48%), objeto contundente 9.414 (4,74%), enforcamento 5.728 (2,88%), substância ou objeto quente 2.342 (1,18%) e envenenamento 1.434 (0,72%). Quanto ao tipo de violência, foram registrados 28.530 (68,23%) casos de estupro, 7.279 (17,41%) de assédio sexual, 2.488 (5,95%) de outras violências, 1.679 (4,02%) de atentado violento ao pudor e 613 (1,47%) de pornografia infantil.
Houve 122.684 (39,44) casos de violência física, 58.321 (18,75%) de violência psicológica ou moral, 54.759 (17,60%) de violência de repetição, 37.978 (12,21%) de violência sexual, 20.950 (6,73%) de negligência ou abandono, 6.925 (2,23%) de tortura, 5.726 (1,84%) de violência financeira/econômica, 2.925 (0,94%) de outra violência, 336 (0,11%) de trabalho infantil, 284 (0,09%) de intervenção legal e 184 (0,06%) de tráfico de seres humanos.
Em relação ao autor da agressão, 32.454 (21,81%) foram realizadas pelo cônjuge, 20.785 (13.97%) por amigos ou conhecidos, 19.472 (13,09%) por desconhecido (a), 13.992 (9,40%) por ex-cônjuge, 13.781 (9,26%) por outros vínculos, 12.722 (8,55%) por mãe, 9.438 (6,34%) por pai, 6.979 (4,69%) por namorado (a), 5.497 (3,69%) por filho (a), 3.459 (2,32%) por padrasto, 4.429 (2,98%) por irmão (a), 3.239 (2,18%) por ex-namorado (a), 744 (0,50%) por pessoa com Relacionamento Institucional, 734 (0,49%) por cuidador (a), 558 (0,38%) por policial ou agente de lei, 262 (0,18%) por patrão ou chefe e 236 (0,16%) por madrasta. (Tabela 2)
Tabela 2 – Dados da violência doméstica na região Nordeste, 2009-2018
Os resultados desse estudo apontam para o aumento gradual das notificações de casos de violência doméstica no Nordeste com ápice em 2018, se apresentando como o terceiro maior em frequência por região de residência, atrás apenas das regiões Sudeste e Sul. Esse dado pode ser interpretado a partir de três hipóteses: um aumento no número de casos com consequente incremento nas taxas de notificação, um aumento do número de notificações sem acréscimo real na taxa de violência e/ou uma relação das duas hipóteses anteriores. Apesar de a segunda hipótese ser mais aceita como consequência das políticas de incentivo à notificação, denúncia e detecção dos sinais de violência doméstica, definir com precisão a diferença
numérica entre os casos de violência e os casos notificados de violência se torna complexa pela própria dificuldade em obter informações acerca de casos subnotificados. Como aponta um estudo multicêntrico da OMS (2005), menos de 25% das mulheres vítimas de violência doméstica procuram ajuda institucionalizada.
Quanto ao tipo de agressão, a força do corpo e o espancamento se apresentam como mecanismos principais, seguido em ordem decrescente por ameaça, objeto perfuro cortante, arma de fogo, objeto contundente, enforcamento, objeto/fluido quente e envenenamento. Esse dado corrobora o resultado do estudo de Menezes, Amorim, Santos e Faúndes (2003) que encontrou empurrão, tapa e manchas roxas como a principal forma de agressão experienciada durante a vida quando questionadas mulheres no puerpério.
Já em relação à caracterização da violência, os resultados apontaram para a predominância da violência física seguida pela psicológica/moral e sexual. Esse dado está de acordo com Paiva, Silva, Neves, Malta, Franco Nettto, & Mascarenhas (2011) que apresentam as taxas de violência doméstica do SINAN em relação ao Brasil inteiro para o ano do estudo e encontrou a violência física, por meio da força corporal, como a mais praticada e seguida pela violência psicológica/moral, sexual e tortura. Entretanto, está em desacordo com o estudo multicêntrico da OMS (Schraiber et al., 2007) que apontou para a violência psicológica como evento mais frequente. Essa discordância se deve principalmente pelo ambiente da notificação (serviço de saúde) que tende a ser o primeiro serviço procurado em caso de agressão e pela dificuldade do serviço em reconhecer a violência psicológica (De Araújo, Pereira, de Freitas, Saturnino & de Lucena Santos, 2019).
Em relação ao agressor, o cônjuge é o principal perpetrador, seguido por amigos, desconhecidos, ex-cônjuge, mãe e pai. Os dois últimos são especialmente relacionados à violência infantil. Esse dado é concordante com Paiva et al. (2011) e com Schraiber et al. (2007) que apontam para o destaque do parceiro íntimo como agressor nos casos de violência doméstica, especificamente contra a mulher. Tal fator é ainda mais evidente quando analisamos a violência sexual, como aponta o estudo de Gomes, Minayo e Silva (2005) ao revelar que cerca de um terço das adolescentes foram forçadas a ter a primeira experiência sexual. A motivação para o crime varia, mas envolve costumeiramente relação com dependência financeira e/ou
emocional, não aceitação do fim do relacionamento e sentimento de posse em relação à vítima. Essas motivações, no entanto, não se aplicam quando o agressor é desconhecido (Gomes, Rosa, Tavares, de Melo & Melo, 2016; Andrade, 2019).
A partir da análise representada, percebe-se ainda alta incidência da violência doméstica, apesar do aumento do número de notificações que se deve a quase três décadas de ativismo para confrontar a violência contra mulheres e desenvolver respostas institucionais eficientes. (Schraiber et al., 2007). A recorrência desse crime se reflete em diferentes segmentos da sociedade e da qualidade de vida da vítima e de seu entorno, se tornando fator de risco para diversas questões de saúde como a gestação e o puerpério, uma vez que mulheres que vivenciaram violência física infligida pelo parceiro iniciam o pré-natal mais tardiamente, realizam menor número de consultas do que o recomendado pelo Ministério da Saúde e tem mais chance de uso inadequado do atendimento pré-natal (Carneiro, Valongueiro, Ludermir, & Araújo, 2016).
É na subnotificação que reside a maior limitação deste estudo, uma vez que os casos notificados ainda não espelham fidedignamente a taxa real de ocorrência. Isso porque muitas vítimas deixam de procurar atendimento por fatores diversos como medo do agressor, vergonha e sentimento de culpa (Sagot & Carcedo, 2000; Schraiber & D’oliveira, 2008). Para diminuir essa diferença nas taxas de ocorrência notificada e ocorrência real, é fundamental reforçar a implantação e adesão da vigilância pelos gestores e equipes de modo a incentivar a notificação. Além disso, a educação da população geral quanto à violência doméstica deve aumentar o número de denúncias e contribuir para que os fatores de silenciamento da vítima sejam ultrapassados (Brasil, 2011).
Conclusão
Este estudo conclui que a violência doméstica ainda apresenta prevalência elevada com predomínio da agressão física nos casos notificados, especialmente pelo uso da força corporal e do espancamento. Chama atenção ainda o alto índice de agressões por autoria do parceiro. Por fim, é necessário acompanhar os dados sobre violência doméstica no Nordeste pois, entende-se que a análise desses dados tem papel fundamental no planejamento de intervenções para alteração do quadro social, na sensibilização dos profissionais de saúde e na identificação precoce de situações de risco.
Vitória Santos; Maria Luíza Rates; Leonardo Andrade; Natália Mota; Yasmin Juliany Figueiredo; Rafael Araújo; Thaís Serafim; Júlia Maria Gonçalves Dias
Artigo desenvolvido pela Liga de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal de Sergipe, parceira da Ciclo Fraterno. Este artigo foi publicado na Research, Society and Development, v. 10, n. 13, e527101321098, 2021 (CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i13.21098